O Brasil está quebrado?
- Danilo Zajac
- 4 de dez. de 2020
- 7 min de leitura
O economês mal intencionado diz que um país pode quebrar na sua própria moeda.

"A verdade dura é que o governo brasileiro quebrou em todos os níveis, federal, estadual e municipal” (Paulo Guedes [1])
“40 milhões de desempregados e você vai ficar dando aumento de salário mínimo? (...) Governo está quebrado e no meio dessa crise se der aumento… Tem que botar a mão na cabeça e dar uma pensada.” (Paulo Guedes [2])
“O Brasil está quebrando. E depois de quebrar não é como alguns dizem a economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver um país de miseráveis, como alguns países da África subsaariana” (Jair Bolsonaro [3])
"A dívida pública vai se aproximar pela primeira vez de 100% do PIB e o déficit público primário vai ser de 930 bilhões de reais neste ano. (...) esse governo não pensou em nenhum momento em como financiar parte desse déficit para controlar a explosão da dívida." (Ciro Gomes [4])
FMI estima que o Brasil terá rombo nas contas públicas até 2025. [5]
De linguagem muito complexa, assim como o Direito, a Economia é um campo muito recluso. É verdade que cada área da ciência possui suas peculiaridades, mas o metiê das leis e das finanças chega a beirar o ridículo. É muito interessante como algumas áreas são de domínio público, enquanto outras são reservadas a poucos. Por exemplo, é muito comum encontrarmos economistas palpitando nas políticas educacionais, mas educadores não tem a mesma autoridade para palpitar nas políticas econômicas.
Antes que algum economista venha me criticar por não estar utilizando a linguagem mais adequada, fica o aviso: eu sou educador, mas tenho estudado com certo empenho sobre a dependência que a política educacional tem na política econômica, afinal, educação custa dinheiro. Estes estudos me permitem ter acúmulo teórico suficiente para afirmar o seguinte: o país não pode quebrar na sua própria moeda.
Os excertos que abrem este post, retirados de matérias jornalísticas, são muito comuns em todos os espectros político-ideológicos. É muito curioso como políticos de esquerda e direita têm a mesma compreensão quando o assunto é o rombo das contas públicas. Essas falas nos levam a pensar de que o Tesouro Nacional é um grande cofre gigante, cheio de cédulas em reais e que o rombo seria uma espécie de assalto a este cofre. Na verdade, o Tesouro é um órgão do Ministério da Economia responsável por garantir que os recursos arrecadados serão distribuídos conforme o orçamento. Nele são definidas as regras sobre como o dinheiro e o patrimônio públicos devem ser contabilizados pelos entes da Federação (União, Estados e Municípios). Além disso, é ele quem contabiliza as receitas e despesas, bem como os ativos e passivos do Governo Federal (União).
Ativos e passivos de que? Bem, esse é de fato um assunto delicado, por isso é mais fácil acreditar que as contas públicas podem ser comparadas ao orçamento familiar. Por essa via de senso comum, os governos não poderiam gastar mais do que arrecadam, assim como eu não posso gastar mais do que eu recebo de salário. Caso isso aconteça, eu terei um rombo para administrar, assim como os governos. Essa lógica pode até ser aplicada aos Governos Estaduais e Municipais, mas não ao Governo Federal. O segredo é simples: o Governo Federal emite sua própria moeda e administra o sistema bancário.
Imaginemos que eu queira ensinar como funciona a moeda aos meus estudantes durante um ano. Daí, para que eles sejam aprovados na minha disciplina, além das notas, eles precisam acumular até o final de cada bimestre 10 (dez) estrelinhas em papel, emitidas apenas por mim. Eu estou livre para emitir estrelinhas quantas vezes for necessário, mas só farei essa operação quando avaliar as atividades dos estudantes e entender essas atividades como satisfatórias. Aos estudantes, caberá a devolutiva de todas as estrelinhas ou não no final dos bimestres, já que o número de estrelinhas que podem ser concedidas para cada um irá ultrapassar a quantidade mínima necessária para que eles sejam aprovados. Isso permite que os estudantes possam acumular estrelas para o próximo bimestre, já que haverá um excedente que não necessariamente precisem utilizar naquele bimestre; ou até doar estrelinhas para os necessitados, seja como um presente para outros estudantes, seja em troca de favores dos colegas.
Perceba que quem precisa das estrelas não sou eu, mas sim os estudantes, que precisam acumular uma quantidade necessária para serem aprovados. No fim do bimestre, posso calcular quantas estrelas emiti e quantas recebi de volta dos estudantes. Se a quantidade de estrelinhas emitidas for igual a quantidade de estrelinhas devolvidas, eu terei saldo 0 (zero). Se alguns alunos resolverem guardar para o próximo bimestre, meu saldo será negativo, já que emiti mais estrelas do que recebi de volta. Perceba que esse déficit não altera de forma alguma a minha prática, pois poderei continuar a emitir estrelinhas no próximo bimestre, já que a demanda dos estudantes continuará existindo.
No próximo bimestre, os estudantes resolvem profissionalizar essa distribuição de estrelinhas. Um deles fica responsável por operar o recebimento de estrelinhas. Assim, fica combinado que esse estudante fará o registro de quantas estrelas cada colega seu tem em uma caderneta. Isso facilitará o meu trabalho, já que irei conceder todas as estrelinhas apenas no final do bimestre, contando com o intermédio do estudante para fazer essa distribuição correta e a partir dos registros da caderneta. Pode-se dizer que os estudantes terão uma espécie de conta dentro da caderneta. A doação de estrelas pode continuar acontecendo entre esses estudantes, mas perceba que ela não ocorrerá de forma direta (com as estrelas), mas a partir de anotações na caderneta: a estrela real só passa a existir quando o estudante responsável receber as estrelinhas e repassar para os colegas no final do bimestre.
Agora, retornando ao campo da economia, eu estaria atuando em sala de aula como o governo, o estudante-responsável como um banco e os seus outros colegas como cidadãos. É claro que as coisas por aqui estão bem simplificadas, mas acredito que essa analogia serve bem para entender que quando o governo compra algo (um material ou um serviço, por exemplo), ele simplesmente envia uma ordem de pagamento em nome do beneficiário do gasto, assim como há o crédito na caderneta do estudante-responsável. Os governos fazem pagamentos simplesmente adicionando números às contas bancárias em computadores, não havendo a necessidade de ele possuir o dinheiro físico antes de fazer essa operação, assim como o professor não precisa das estrelinhas no momento para creditar essas estrelas na conta de um dos estudantes.
O que quero dizer é que não há cofre, não há nenhuma pilha de barras de ouro ou qualquer outro material que o governo tenha coletado das pessoas antes de poder digitar esses números. O governo coleta sua própria moeda na forma de impostos para atribuir legitimidade a essa moeda, não para se financiar. É evidente que, assim como o professor não credita estrelas à toa, a emissão de moedas, mesmo que virtual, é uma grande responsabilidade para o governo. Daí que ideia não é sair por aí "imprimindo dinheiro" sem que a economia brasileira tenha a capacidade de absorvê-lo.
No Brasil, essa capacidade de absorção é evidente. A economia brasileira está em situação crítica, portanto, a falta de aquecimento leva a necessidade do investimento público. Muito se fala em políticas distributivas para operacionalizar esses investimentos, a partir de impostos sobre grandes fortunas e sobre heranças. Essa é outra das funções dos impostos: distribuir, o que de fato poderiam permitir um aumento na arrecadação do governo. Contudo, a linha fina está na compreensão de que um governo que emite sua própria moeda não precisa arrecadar para gastar. Ele simplesmente gasta e acumula déficit. Se é o governo é o único emissor de moeda, quando há déficit no governo, há superavit do setor privado.
É claro que essa avaliação precisa ser ponderada, por isso existem outros mecanismos que controlam eventuais sobras de moeda que a capacidade real da economia não foi capaz de absorver. Contudo, nosso cenário aponta que a previsão para o PIB brasileiro em 2021, segundo a OCDE, é de uma queda de 6% [5]. Lembremos que a situação econômica brasileira já nem era das melhores nos anos anteriores. A compreensão de como funciona a economia nos permite entender como o Governo Federal, muito a contragosto [6], fez a adoção do auxílio emergencial, explodindo o déficit do Tesouro, sem arrecadar no mesmo montante.
Sabe-se que em países como o Brasil, a economia desaquecida implica em menor arrecadação, já que a política fiscal brasileira incide mais no consumo das famílias. Apesar de ser condenável, pois não redistribui renda, essa política não impediu de o governo gastar muito mais do que arrecadou.

[7]
O déficit brasileiro acumulado em 12 meses ultrapassou a marca de R$ 1 trilhão pela primeira vez em toda a série histórica, nem por isso houve nenhum sinal de dificuldade de "financiamento". O governo brasileiro, que emite sua própria moeda, nunca pode ir à falência ou ser incapaz de pagar suas contas, desde que essas contas estejam denominadas na moeda que ele emite. O ponto central é que está sempre nas mãos do governo a capacidade e a decisão para realizar tais pagamentos.
O terrorismo fiscal dos economistas de mercado, quando dizem que precisamos nos preocupar com o rombo, é vantajoso para quem? Um entendimento mais honesto da economia permitiria que em tempos de COVID-19, por exemplo, pudéssemos ter um contingente ainda maior de farmacêuticos, médicos e enfermeiros para prestar o atendimento necessário. A falta de vontade política e a desonestidade intelectual é um projeto que serve muito bem aos processos de acumulação de capital, que favorecem os mais ricos e excluem os mais pobres. Imagine você se toda a população soubesse que a construção de um hospital ou uma escola pública gratuita e de qualidade no seu bairro depende mais de vontade política do que do recurso financeiro...
É fato que uma economia a serviço das pessoas exige muito mais planejamento e soberania estatal, pois implica em políticas de desenvolvimento contra-hegemônicas que vão muito além das cartilhas do Banco Mundial. Aumentar o investimento público nestes termos implica em uma política industrial que o Brasil nunca teve capital político para fazer, afinal, é pedir muito para um país que sempre levou tudo na base da conciliação. Para além disso, é necessário que o recurso seja escasso para que haja acumulação na mão de poucos, que muitas vezes nem são brasileiros. Aos pobres, resta o medo do desemprego, do desalento e da miséria. A mão invisível do mercado, a partir dos mitos econômicos, impede a intervenção estatal, cujo investimento permitiria até o pleno emprego. Será que seria interessante ao capital que toda a população estivesse empregada e com os seus direitos sociais resguardados? Daí que utopias podem se tornar realidade: comecemos por querer mudar aquilo que nos dizem que não podemos.
Referências:
DALTO, F. A. S.; GERIONI, E. M.; OZZIMOLO, J. A.; DECCACHE, D.; CONCEIÇÃO, D. N. Teoria monetária moderna: A chave para uma economia a serviço das pessoas. Fortaleza: Nova Civilização, 2020.
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